Entristecer: verbo permitido

Brendon Klopass Locks
3 min readJan 5, 2021
ARCIMBOLDO. Giuseppe. Vertumnus. 1590. Óleo sobre madeira, 68 x 56 cm.

Não há muito o que falar sobre a tristeza, apenas que é passageira, cíclica, rotineira e subjetiva; mas abrindo mão de qualquer pressuposto filosófico ou psicológico, é preciso admitir que independente das motivações, ou a falta delas, a tristeza precisa ser vivida.

Longe de fazer uma ode à tristeza ou romantiza-la, nenhuma tristeza deve ser interrompida pela vontade alheia de ignora-la, e que comumente propõe anestésicos falaciosos e artifícios culturais, cujo único objetivo é apenas enganar o sentimento, sem jamais curá-lo.

No ano passado ao abordar os textos de opinião, utilizei com meus alunos o texto “Pelo direito à tristeza” do escritor e psicanalista Contardo Calligaris para melhor exemplificar o gênero crônica argumentativa. No texto o autor inferia a ideia de que as crianças por si não podem sofrer, pois são crianças e seu único dever é brincar e ser feliz; e toda vez que uma criança se vê triste ou abatida, seja qual for o motivo, o adulto a repreende argumentando que de modo algum ela pode ficar assim. Grande parte dos alunos concordaram, de que sempre fora assim com eles, os pais e demais adultos responsáveis nunca os permitiram a tais deslizes e combatiam suas tristezas com o mesmo argumento. Logicamente comigo foi igual e até pensei dizer a eles que na vida adulta nada disso muda, de que muitos a nossa volta irão, a todo custo, nos obrigar a engolir a felicidade, ignorar qualquer lampejo de abatimento e se propor a entretenimentos e práticas muito pouco combativas aos desgostos da vida.

Quando se fala em permitir a tristeza do próximo e não interferir, logo surge a concepção de que a tristeza é boa, saudável e aponta-se para um gesto masoquista de extrair prazer do que dói e faz mal. Mais do que isso, surgem também predicados como ingratidão, teimosia e individualismo. Seja qual for o motivo da tristeza: termino de namoro; amizade desfeita, morte na família, falha na vida profissional, o time que só perde ou o cãozinho que se foi, deve se permitir que o momento tenha o mínimo de espaço no pensamento e no tempo daquele que a sofre, gerando ou não sabedoria após um momento tão conturbado. Nem sempre se pode ser feliz, muito menos igualar a felicidade o tempo todo, isto é idiotice, e quem afirma uma felicidade tão plena, ou delira em ideias absurdas ou abusa de sedativos e outros brinquedos. Mais controverso é quando aquele que mal conseguiu resolver sua própria felicidade (ou sua tristeza) busca a todo custo golpear a desgraça do próximo, pois não se permite ver alguém triste ou em admitir que a tristeza é parte presente de uma sociedade construída a partir do consumo desenfreado, das promessas terrenas e de manuais (falhos) de autoajuda.

Se a tristeza é passageira, ora, por que dispensá-la antes da hora? Por que não deixa-la seguir seu trajeto e descer no ponto que lhe é destinado? Quem sabe quando se antecipa seu desembarque, a tristeza por si só não decide retomar a condução perdida porque ainda não chegou ao seu destino e não finalizou sua viagem?

Arcimboldo, pintor milanês, ficou notavelmente conhecido por utilizar figuras como verduras e flores, sobrepondo e encaixando-as de tal modo a tecer um formar um rosto humano. Num primeiro olhar percebe-se a feição de um homem a partir de plantas e frutas, mas na verdade o rosto nunca existiu, pois as plantas e frutas sobrepostas nunca deixaram de ser frutas e plantas e permanecem ali enquanto nossa óptica consegue assimilar apenas o rosto de um homem. Assim ocorre quando nos tentam aplacar a tristeza na marra; formam um quadro cujos elementos principais são sobrepostos a criar uma ideia distorcida do que não sentimos e mas vislumbramos. Se retirarmos peça por peça deste, ou seja, daquilo que nos oferecem para ignorar a tristeza, nos resta um vazio ainda maior e a tristeza lapidada em sua amarga totalidade. Arcimboldo ao menos, retirando peça por peça de uma de suas obras, ainda teria além do vazio sem as plantas e frutas, uma boa sopa ou um singelo canteiro.

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Brendon Klopass Locks

Professor, poeta e romancista | Autor Das lembranças que deixei em outra casa